#1 - Histórias, nossas histórias [1ª temporada]
Luciano Ferreira de Lima, um guerreiro que não foge à luta
Esse é o primeiro texto dessa nova seção, pra contar algumas histórias de pessoas admiráveis e que considero terem visões interessantes, agregadoras sobre a vida, o mundo, a sociedade…
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Eu era repórter de jornal impresso quatro anos atrás. E, em uma das tardes de labuta, seguia pra fazer uma entrevista. Mas essa não era uma tão comum, feito outras do dia a dia. Era uma pauta daquelas que a gente começa a pensar, desenhar na cabeça com alguma antecedência.
Lembro que abri o texto daquela reportagem (infelizmente fui pesquisar por ela e descobri que está fora do ar) contando do caminho até a casa de Luciano Ferreira de Lima, na zona norte de Sorocaba. No rádio, pouco antes de chegarmos, ecoavam os versos inesquecíveis de Xande de Pilares.
“Guerreiro não foge da luta, não pode correr, ninguém vai poder atrasar quem nasceu pra vencer”
Não teve jeito: a música inspirou o título daquela reportagem: “Luciano, um guerreiro que não foge à luta”.
Criei uma conexão forte com o personagem e a família dele. Curiosidade: foi minha mãe quem descobriu a história e sugeriu que eu fizesse uma reportagem (esse bastidor está no fim da edição).
Luciano é coletor de lixo há sete anos. De início, sentia-se envergonhado do ofício. Abraçou porque estava enroscado numa caçamba de dificuldades.
No entanto, o decorrer dos dias floresceu um profissional diferenciado. Alguém que enxerga além.
Se os Racionais verbalizaram que “do lixão nasce flor”, Luciano incorporou a visão que “do lixão também nasce conhecimento”. Durante as coletas nas ruas, começou a compor uma biblioteca própria com livros que eram considerados descartáveis por muita gente.
Hoje, são cerca de 600 títulos à disposição em um dos cômodos do imóvel simples, mas habitado com muito amor por ele, a esposa Renata e os filhos Marcos, de 15 anos, e Melissa, de 10.
Aos 41 anos, Luciano continua acreditando que “um guerreiro que não foge à luta” poderia ser o título do livro da própria vida.
Um caminho desenhado pela perda da mãe ainda na adolescência; o convívio com um pai que se tornou alcoólatra depois do vazio deixado pela companheira; e a rebeldia manifestada na criminalidade e nas drogas pelo então jovem morador de Sorocaba.
Aos 13 anos, veio a primeira “visita” à delegacia, quando, em suas palavras, “subtraía fitas de Nintendo” em uma loja de shopping.
E logo após completar a maioridade, a primeira prisão real.
“Anos 2000, chegava a furtar cinco, seis toca-CDs por dia. Na época, isso dava mais de mil reais. Em 2003, cheguei a tirar uma (moto) Twister à vista. Era ousado, frequentava lugares de bacana. Mas as pessoas pensavam: ‘Ou tem muito dinheiro, ou é ladrão’.”
A detenção provocou um pensamento: ele nunca mais queria ter a liberdade cerceada. A partir de então, a vida mudou. Não sem pedras na estrada, mas livre pra ir atrás do que considera “a cura do planeta”: o conhecimento.
Inclusive, até pensou em se tornar professor. Só que a pandemia pausou o sonho, já que não tinha computador e precisava estudar no espaço da faculdade.
Esse desejo ficou escanteado, outros planos viraram prioridade. Luciano segue na profissão de coletor de lixo e também ativou uma mentalidade empreendedora: pra complementar a renda, vende produtos variados, desde chinelo até geladeiras.
Ele é uma espécie de “crediário ambulante”: compra os itens um pouco mais caros à vista a quem não tem condição e depois vai recebendo em parcelas, com um percentual acrescido para conseguir lucro com o negócio.
“No começo, eu tinha 200 reais guardados, comprei seis chinelos. Ali, dobrei para 400 reais. Esse foi o pontapé de partida.”
Quatro anos depois do nosso primeiro contato, convidei Luciano pra abrir essa nova seção da news. Voltei a receber lições e espero, de coração, que seja valioso a você. Esse homem, fonte empírica de conhecimento, avisa: “A ignorância faz muitas pessoas reféns.”
EP: O que a coleta de lixo representa?
LF: Tenho paixão e gratidão pela coleta. Vejo que é uma questão de saúde pública. O que seria de um município sem a coleta? Se dá uma greve de um mês, imagina como não ficaria a cidade… Insetos, ratos, isso traria doenças. Eu vejo a coleta de lixo tão importante e digna quanto a medicina. Me sinto honrado por ser coletor, ser chamado de lixeiro pra mim também não é ofensivo. Pra mim é motivo de orgulho, é o lugar que me acolheu e projetou pra ser a pessoa que sou hoje. De lá pra cá eu cuidei da minha família graças a esse trabalho.
EP: Antes, até você tinha um olhar diferente em relação ao trabalho?
LF: Quando eu estava longe, jamais imaginaria trabalhar de coletor. Era o fim do mundo. Era derrota. E honestamente, quando comecei era uma humilhação, tinha vergonha que alguém conhecido me visse trabalhando em cima de um caminhão de lixo. Muitas vezes, quando ia pegar ônibus, chorava no ponto. Achava que não era justo pra mim trabalhar naquela profissão. Ignorância minha. Quando eu entrei, vi que algumas pessoas olhavam de formas diferentes. Mas, por incrível que pareça, hoje o coletor de lixo ultrapassou tanto policiais militares quanto bombeiros na visão das crianças. Hoje, se passa na frente de uma escola, na frente de uma criança, o coletor é até venerado. E tem até filas, muitos currículos de pessoas querendo entrar nesse trabalho.
EP: E o amor pela leitura…
LF: Quando eu entrei o trabalho era muito pesado e eu não conseguia observar muita coisa. Mas, passado um ano e meio, melhor adaptado, como eu gostava de ler, comecei a encontrar os livros no lixo. E aí levava embora pra casa. Não imaginei que a gente ia montar uma biblioteca… Começou com um livro, dois… Agora tem mais ou menos uns 600 livros, fora o que a gente já distribuiu em doação, palestras.
EP: O que os livros mudaram na sua vida?
LF: O conhecimento. Eu era um cara de baixa autoestima, rejeitado socialmente, muita timidez. Tinha um complexo de inferioridade. Quando comecei a ler, aquilo abriu minha mente, mostrou pra mim que socialmente a única forma de você se igualar a alguém é com conhecimento. Independentemente se você é pobre ou rico, o que mantém o mesmo nível é o conhecimento. Pra mudança no nosso país é só assim. Se incentivassem mais nas escolas, houvesse políticas direcionadas à leitura, eu tenho certeza que o Brasil seria um país diferente. Porém, isso não é feito porque, se fosse feito, a gente ia desbancar essa corja que está lá. Essa é a razão de não existirem tantas políticas nesse sentido.
EP: O que os colegas diziam quando você começou a recolher os livros?
LF: Deboches sempre vão existir. Se você não acreditar, ninguém vai. ‘O que você vai fazer com livro? Pra quê livro?’, diziam. Só que nos intervalos, quando o caminhão vai descarregar, leva mais ou menos 40 minutos, eu estudo. Quando não estou lendo, estou incentivando alguém, passando conhecimento. Eu era apenas um coletor na empresa, hoje me chamam de professor. Qualquer assunto que nós sentarmos numa mesa trocar ideia, vou saber entrar e sair. Até inglês. Nunca passei por uma sala de inglês, mas achei necessário aprender, sozinho, assistindo filmes, lendo algumas coisas, usando aplicativos. Por incrível que pareça, me convidaram pra uma festa e o dono era da Marinha dos Estados Unidos. Ele sentou na mesa. Lógico, não falo fluentemente, mas eu entendia o que ele falava, e ele me entendia. Eu sou um cara que quero saber de tudo. A única coisa que eu não acompanho é política, isso me enoja. Nem direita e nem esquerda. Eu acredito que a esquerda e a direita passam pra nós uma coisa, mas na hora de fechar a cortina eles estão todos almoçando juntos.
EP: O que você considera uma vida bem vivida?
LF: Eu optei por viver. Viver o momento, de forma tranquila. Eu sou um cara que penso no amanhã, mas eu não deito pra dormir com os problemas de amanhã. Se você viver pensando no amanhã, fica doente. Precisa pisar mais no freio e menos no acelerador. É o que acontece no nosso mundo: o pessoal é aceleradão, acham que dá pra antecipar as coisas correndo. Hoje eu sei onde quero chegar, onde quero ir. Também sou jogador de várzea, por exemplo, mas não sou um cara aleatório. Eu me preparo, me alimento bem, quero ser o melhor naquilo que eu faço.
EP: Você sempre foi um cara disciplinado, focado?
LF: Não, sempre fui desleixado, relaxado, nunca respeitei horário, honrava pouco com a minha palavra. Isso foi a mudança de mentalidade a partir da leitura de livros.
BÔNUS 1 - LUCIANO E SEU TOP 3 LIVROS
Como fazer amigos e influenciar pessoas - Dale Carnegie
Os miseráveis - Victor Hugo
Lincoln (biografia) - Doris Kearns Goodwin
EP: O que mais te envergonha e amedronta na sociedade?
LF: O que mais me envergonha é a ingratidão. Você faz, se doa pras pessoas de certa forma, fazendo projetos sociais, oferecendo seu tempo, e as pessoas não conseguem enxergar nesse momento, só dão valor depois. A única coisa que eu tenho medo é o que será do nosso país com a juventude que vem aí.
EP: Acreditar em um mundo melhor é uma grande e eterna utopia?
LF: É utopia, sim. Cada pessoa tem o seu mundo individual. Então aquela pessoa que fizer por onde, vai viver realizada no seu mundo. Agora, no mundo como um todo, que envolve política, eu vejo como utopia. Mas cada um pode tornar o seu mundo um pouco melhor. Aconteceu comigo.
EP: Qual seria o seu principal conselho às pessoas desesperançosas, que não têm encontrado tanta força/leveza pra seguir em frente?
LF: Cada pessoa tem uma história. Tem muitas pessoas que se você perguntar, não sabem a própria história. Pra que você conheça o seu futuro, precisa conhecer o seu passado. Saber de onde veio. Se não sabe de onde veio, não vai saber pra onde vai. Foi o que eu fiz. Voltei 40 anos atrás, buscando as origens, entendendo a minha dificuldade. Essa visita não é fácil, mas é necessária. Descobri que estava em um ambiente hostil, que tive problemas de carência afetiva. Fui procurar como resolver. Comecei a aparar essas arestas. A psicologia foi me dando um caminho. Fui entendendo mais meus erros. O que aconselho, honestamente, pra qualquer pessoa, é conhecimento. Ele dá outra perspectiva de mundo. E o conhecimento cura.
EP: Se você tivesse oportunidade e o superpoder de escolher uma vida diferente da sua, faria essa opção?
LF: A minha vida teria que ser essa, pra ser o homem que sou hoje, precisava passar pelos momentos que passei. Sou grato por cada momento que passei, cada choro que chorei, cada pão que não comi… A minha vida teria que ser assim. Essas dores me fizeram o homem que eu sou hoje.
EP: No fim das contas, a vida vale a pena?
LF: Vale a pena. São milhões de espermatozoides querendo alcançar um óvulo, e apenas um alcança, nessa corrida pela vida. Isso não é em vão, tem que valer a pena. A vida é maravilhosa. A gente, pela nossa ignorância, acaba fazendo com que a vida fique pesada pra nós. Mas a vida vale a pena, eu viveria tudo de novo. Se eu pudesse voltar atrás, não mudaria nada.
BÔNUS 2 - BASTIDORES
Aqui, ele conta um pouco sobre essa nossa conexão, que quase não aconteceu…
🎵🎙️ E mais: se também quiser curtir o embalo sonoro que inspira o Luciano…
Com base nos critérios de recompensa para assinantes pagos, meu muito obrigado a:
Mariana Maginador, Rafael Vieira, Camila Laister Linares, Bruno Rodrigues, Carol Magnani, Adelane Rodrigues, Rogeria Portilho, Lucas Pereira, Beatriz Souza e Ana Marin.
Até logo! 😘
Que história incrível, Esdras! Parabéns pela sensibilidade para enxergar o valor dela!
Esdras, acompanho seus textos desde que retomei a paixão pela escrita. Curti demais ler a história do Luciano e adorei esse novo projeto da sua news. Sigo ansioso pelas próximas edições! :)