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Era junho de 2006. Quase no raiar do dia 18, por volta de 5h, Fernando Bogas Fraga caminhava com um ex-namorado pela região da avenida Paulista, em São Paulo. Ambos voltavam de uma balada frequentada depois de participarem da 10ª edição da Parada do Orgulho LGBT na cidade. Naquele ano, pelo porte, o evento, com 2,5 milhões de participantes, foi incluído no Guinness Book, o Livro dos Recordes.
Uma ironia das mais infelizes aconteceu com ele horas depois de estar presente numa grande festa, num encontro de celebração de vida. O lema em 2006 era “Homofobia é crime”. Uma frase que não inibiu dois criminosos que se aproveitaram dos últimos requintes da escuridão pré-amanhecer.
Em um dos vários cruzamentos da avenida, um dos homens chegou de surpresa e deu uma garrafada na cabeça de Fernando. O namorado da época se assustou, mas sabia que precisavam correr.
Durante a fuga, dezenas de garrafas foram arremessadas em direção aos dois.
“A intenção deles era matar. Aí eu saí correndo, coloquei a mão na cabeça e gritava ‘fogo, fogo’. É uma coisa que eu aprendi, numa situação de perigo você não deve gritar socorro, porque as pessoas ficam com medo. Aí paramos perto de um carro, falei que tinha levado uma garrafada, expliquei e vazaram, me largaram lá (com o ex).”
O sangue escorria pela cabeça. Mas o então jovem de 24 anos conseguiu se abrigar num mercado e, apesar do susto, se recuperou¹.
E aquele foi apenas um dos capítulos de tantos incêndios a controlar na vida deste sobrevivente de 41 anos, com histórias a perder de vista. Algumas delas Fernando me confidencia em quase uma hora e meia de conversa, ao passo que vou percebendo não ser exagero dizer que uma edição de newsletter é pouco para tantos causos.
Esse papo (é até difícil chamar de entrevista) aconteceu na segunda vez que o encontrei.
A primeira foi durante a cobertura de um festival em São Carlos. Em uma das palestras, Fernando pediu a palavra. Aquela palhinha sobre os rumos recentes de sua vida me fizeram ter certeza que precisaria conhecer melhor aquela história. Consequentemente, mereceria estar aqui.
Sorrir pra encarar
Fernando renderia uma biografia das boas. Por ora, você conhecerá algumas partes desse protagonista de um livro muito aberto. E que a vida pode até entregar páginas cinzentas em suas mãos, mas ele faz questão de colori-las à própria maneira. Seja com a evidência mais transparente (do vestir), ou com a risada que costuma entremear a própria fala.
Mas ele reconhece que a constância do riso também é capa de proteção.
“Eu sempre fui uma pessoa que tive dificuldade de acessar a tristeza, isso pra mim é uma coisa que por um lado é muito bom, né? Acho que é mais bom do que ruim, mas também tem um lado ruim porque eu não sei chorar, não sei ficar deitado no travesseiro e ficar ‘ai meu Deus está acontecendo isso comigo’.”
E deve demandar muito autocontrole conseguir sorrir diante das perseguições, do preconceito sofrido por ser aquilo que é. O episódio das garrafadas não foi o único. Antes mesmo de ter certeza sobre a homossexualidade, Fernando ouviu de um professor na época de escola que precisava jogar futebol, afinal “vôlei não é esporte de menino”.
Mais tarde, já tendo quase certeza sobre a orientação sexual, usava um moicano vermelho e, num bar, foi xingado por um rapaz.
“Quem você pensa que é? Só punk usa moicano e você é viado, viado não usa moicano”, ouviu.
À família, pelo menos, a orientação nunca foi um tabu. “Minha família é muito católica, meus pais bem fervorosos. Só que assim, eles realmente seguem a palavra de Deus, que é amar ao próximo como a ti mesmo. Então meus pais nunca me recriminaram de nada”, diz ele, que é o caçula e tem um casal de irmãos: Alexandre (que também é gay) e Erica, que o possibilitou ser tio.
TDAH e reprovações
A discriminação não é o único desafio de Fernando. O Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) também o acompanha.
Chegou a repetir a antigamente chamada segunda série e também o segundo ano do colegial. Tem dificuldade com atividades que exigem muita concentração, pois se sente disperso rapidamente. “Na faculdade, eu pegava o livro pra estudar e ficava andando pela casa, tentando ler. Às vezes, chega num ponto e você não lembra o que leu antes. Aí eu ia lendo e gravando e depois ouvia no fone.”
Grandes batalhas
E se o passado foi desafiador, os capítulos mais recentes da vida dele vão muito além. Exigem uma força que confessa não saber de onde tira e que costuma surpreender as pessoas ao redor.
Em 28 de março de 2018, descobriu ser soropositivo. “Lembro exatamente a data e com quem cometi esse deslize.”
Com o cuidado adequado, o vírus HIV não vinha limitando em nada a vida. Só que em 2021 veio a pancada mais forte: um diagnóstico de câncer. Retirou um tumor na cabeça e, algum tempo depois, soube que o principal rastro da doença estava no pulmão. Continuou o tratamento, com direito a quimioterapia.
Até que, no início deste ano, uma nova ressonância apontou o que chama de “alguns pontinhos no cérebro” e, por isso, precisou voltar a se tratar. O acompanhamento o fez ser afastado do trabalho de tosador, ofício que desempenha há nove anos e descreve com muito amor.
Fernando conta que os médicos têm tido dificuldade para “fechar um diagnóstico”, até porque desde março sofreu uma “pane” da cintura pra baixo: a bexiga, na maioria das vezes, só funciona com auxílio de sonda; precisa fazer lavagem eventualmente por conta da dificuldade de evacuar; e sente as pernas cada vez mais fracas e o pé inchado, o que inclusive rendeu uma queda recentemente.
“Uns 8 meses atrás, minha mãe falou: ‘Filho, você passa por tanta coisa e não reclama de nada, né?’ E eu sou assim, sempre fui assim, sempre fui muito alegre”, reforça ele, que se intitula como uma “bomba-relógio”.
Uma outra batalha no meio desse percurso surgiu há cerca de três meses, quando o então namorado decidiu terminar o relacionamento.
Fernando admite que eram personalidades diferentes. “Ele é bem mais caseiro, e eu muito mais Tribalistas: ‘Eu sou de todo mundo e todo mundo é meu também’. Mas não quer dizer putaria, é só que gosto muito de sair, sou muito sociável.”
E durante vários momentos, assim como na passagem do parágrafo anterior, a música se faz presente.
De repente, ele mistura mais duas canções.
“Eu vim, passei pela depressão, voltei ao normal, porque também não consigo ficar muito tempo triste. Eu falo que sou a música do Frejat (e começa a cantarolar…): ‘Se você ficar triste, que seja por um dia, e não o ano inteiro’. Mas aí vem outra coisa que eu não consigo muito, que ele diz: ‘Que você descubra que rir é bom, mas que rir de tudo é desespero’. Então acabo entrando nesse rir de tudo é desespero. Eu falo que eu também sou Duda Beat: ‘Eu vivi à flor da pele, e nem percebia que das vezes que eu ria era vontade de chorar’. Eu sou assim, converso e coloco uma música no meio.”
Ouça um pouco desse modo melódico dele levar a vida:
À flor da pele talvez seja mesmo a melhor definição para Fernando, o filho da Lucia e do Anderson. O irmão do Alexandre e da Erica. O tio da Pietra.
Tão visceral que faz questão de me mandar um áudio horas depois da nossa conversa, agradecendo a oportunidade e fazendo mais um voto de fé de quem tem muita esperança. Mais um retrato escancarado deste sonhador, que potencializa a característica pelos unicórnios que tanto gosta de trazer nos looks.
“A morte bate na minha porta todos os dias, mas não vou deixar ela entrar” é uma das frases do áudio de mais de três minutos.
Me arrepio e emociono com esse sobrevivente que nasceu em 23 de abril de 1982.
“23 de abril é dia de São Jorge, São Jorge Guerreiro. Caiu bem porque é um dragão por dia, às vezes dois ou três que eu mato, né.”
Mando uma mensagem de volta e digo que sou eu quem agradeço pela possibilidade de conhecer alguém disposto a colorir uma vida longe de ser fácil.
¹ Nota preocupante: o cenário de violência contra a comunidade LGBTQIA+ pouco mudou de lá pra cá: em 2022, por exemplo, o Brasil seguiu liderando o ranking de países com mais mortes de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros.
Logo abaixo você fica com outros trechos dessa entrevista transformadora:
EP: O que você considera uma vida bem vivida?
FB: Eu acho que é uma vida sem muitos padrões. Sem muitas caixinhas colocadas. Ah, ‘isso aqui é assim’, então, se todo mundo faz, eu faço assim… Se todo mundo brinca, eu brinco assim. Não! Seja criativo, vai aí, faz a malemolência da vida, sobe e desce e segue em frente.
EP: O que mais te envergonha na sociedade?
FB: O preconceito. Preconceito diante de tudo: da roupa, do corpo da pessoa, se é gordo, se é magro, pela cor… A gente fala muito só sobre cor assim, mas o gordo e o magro também sofrem muito, né? Então eu acho que é isso, (precisamos ser) livres de preconceito, livres de rotulações.
EP: Acreditar num mundo melhor é uma utopia?
FB: Não! Eu sou um sonhador e sempre acredito no mundo melhor porque, por mais que não vá ser o mundo perfeito que a gente acha que que possa existir, acho que tem sempre a melhorar. Então cada pontinho que você faz aqui, como essa conversa que a gente está fazendo, é um ponto para melhorar o mundo.
EP: Qual é seu principal conselho para aquelas pessoas que estão desesperançosas, sem forças para seguir?
FB: Acho que isso entra um pouco na espiritualidade. Você se desenvolvendo espiritualmente, e eu não falo espiritualmente de lá na igreja para ficar rezando, né? É espiritualmente. Você é expandir sua consciência e ver que o que nós temos aqui é uma maravilha. Eu tô aqui olhando pra árvores maravilhosas dentro de um prédio com puro concreto, entendeu? É ver que seu Deus, independentemente de qual Deus seja, está presente em tudo. Então assim, tudo há uma felicidade, tudo há uma coisa que a gente possa olhar e falar assim: ‘Não, isso daqui pode ser legal’. Porque a tristeza tá posta, a tristeza a gente já vem com ela. Tem que sempre buscar em coisas pequenas a felicidade, acho que é basicamente isso.
EP: Você falou de ser um cara sonhador, né? É qual é o maior sonho ou qual é o sonho de momento do Fernando?
FB: Na verdade, o meu sonho mesmo é ter um espaço que eu possa cuidar de animais que estão aí jogados às traças, né? Porque eu vejo na rua de casa e tem muito animal assim na cidade inteira. Eu tenho a vontade de, além de cuidar desses animais, de adestrá-los, transformá-los em animais terapêuticos e levar eles em escolas por exemplo, na APAE (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais), para as crianças brincarem. O animal terapêutico é aquele animal que você pode até dar um tapa na cabeça dele que ele não vai fazer nada. E as crianças, às vezes com deficiências, neurodivergentes, né, elas acabam puxando a orelha, beliscando o cachorro... E aí esse é meu sonho, sabe, criar um um lugar para os animais e treiná-los para serem cachorros que ajudam os humanos.
EP: Se você tivesse um superpoder, de trocar de vida, você faria essa opção?
FB: Jamais. Minha vida foi cheia de altos e baixos e momentos muito difíceis, mas eu jamais (trocaria). É a vida que Deus me deu, nessa passagem que eu estou, então eu amo demais ser essa pessoa colorida, que um dia não foi colorida, mas agora se recoloriu.
EP: No fim das contas a vida vale a pena?
FB: Vale muito a pena, porque a vida é sempre uma descoberta, é uma coisa que é divina, né? Eu falo para a minha avó, que tem 99 anos: ‘Vó, eu vou me curar e eu vou chegar com igual você, nos 99 anos, porque eu amo a vida.
A indicação musical dele:
Tá curtindo acompanhar histórias como as do Fernando, da Cleide e do Luciano?
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Até logo! 😘
Adorei a história.
Uma frase que me chamou a atenção é quero levar pra mim:
"Porque a tristeza tá posta, a tristeza a gente já vem com ela. Tem que sempre buscar em coisas pequenas a felicidade."
Ah que pessoa linda!
Obrigada por trazê-lo aqui.
Obrigada por dar voz à história dele e por nos transformar através dela.
Até breve.