Leia a edição anterior: [a grande utopia do querer ser]
Esse texto é inspirado principalmente pelo episódio 100 do ‘Boa Noite Internet’, uma ótima recomendação do meu querido , que disse ter semelhanças com a última edição que escrevi…

A volatilidade da vida tem forte conexão com o nosso acionamento frequente do piloto automático.
“Olha, o Itaú agora está aqui”, aponto à minha mãe, indicando que há uma nova agência alguns poucos metros acima de onde costumava ficar, na mesma avenida.
No banco do passageiro, ela repara. E segue usando os olhos mais bonitos de todos os tempos pra viajar ainda mais na observação.
“Olha, uma Galeria do Rock… É nova”, me diz.
“Não, mãe, a loja já está aí há, sei lá, uns dois anos”, respondo.
Essa avenida é um dos principais acessos ao apartamento da minha mãe. Não que ela passe por ali todos os dias, pois existem outras rotas. Mas sabe se lá quantas vezes esteve com o volante à frente e as bolas de gude azuis disponíveis nesses últimos dois anos. E nunca reparou naquela loja imponente, cujas cores preto e laranja chamam muito a atenção.
Não posso julgar minha mãe. Isso já me aconteceu muito. Não necessariamente com uma loja em específico, mas normalmente com construções. Quantas vezes, em uma área que costumo passar frequentemente, finalmente coloco meus olhos em funcionamento e digo:
“Não é possível, de onde surgiu esse prédio?”, questiono, mirando num possível décimo andar em construção. Onde já se viu, será que andam construindo dez andares na calada da noite?
Que nada. É a gente que olha pouquíssimo, com cada vez menos profundidade e atenção ao nosso redor.
No podcast citado ali em cima, como fonte de inspiração, Cris Dias segue justamente essa linha de que precisamos prestar mais atenção na vida, em seus pormenores, detalhes, simplicidade.
É como se precisássemos sentir mais, viver, de fato. Não apenas rolar telas por meia hora até cansar e, no minuto 30, esquecer completamente o que foi visto no minuto 1.
A vida tem se tornado cada vez mais esse looping de estímulos e atividades infinitas. Em que o tempo de uma máquina batendo as roupas sujas é o que você precisa pra aspirar a casa-fazer o almoço-pagar as contas. Só que depois, às seis da tarde, se dá conta de que faz mais de oito horas que as peças estão lá, murchas, fechadas numa claustrofobia de escuras e coloridas — afinal, não se pode perder tempo separando, não é mesmo?!
No compasso do esquecimento, elas clamam pela libertação, pelo varal que será como um cilindro cheio de oxigênio.
Escrever isso me lembra uma crônica bonita do meu querido Lucão:
“Entre lavar e secar tinha um tempo que era de tantas coisas: de brincar na rua; de fofocar na porta com os vizinhos; de ficar na mesa depois do almoço conversando com a família, enquanto os netos, na sala, assistem à TV.
Quando as roupas iam para o varal, a gente ia viver. O tempo não podia ser acelerado nem retardado. As roupas no varal tinham o tempo delas, um tempo que a gente conseguia ver passar e quase dava para tocar com as mãos. Aliás, era preciso tocar nas roupas com as pontas dos dedos para saber se já estavam secas. E se não estivessem, a gente ia aproveitar o tempo que ainda tinha.”
Será que um dia finalmente nos daremos conta de que temos jogado demais contra o tempo? Que na verdade é insano e vexatório a gente achar bonito e falar com orgulho aquelas frases do tipo: “Ai, queria tanto que meu dia tivesse mais de 24 horas…”
A gente anda inserido nessa maratona de aniquilar o tempo e pensa que arrasa quando tica o “feito” naquele checklist de 415 atividades numa segunda-feira qualquer.
Estamos arrasando tanto que, dentro daquelas horas todas, não fomos capazes de ver que uma lagarta no quintal acabara de se tornar borboleta, uma das transformações mais belas que se pode testemunhar, um dos quadros mais incríveis que a natureza e a metamorfose pintam por aí.
Será que um dia, finalmente, entenderemos o quanto é importante voltar a estar de corpo presente por aqui?
Não deixar passar batido aquela imagem do vô descascando o milho.
Não olhar pelo celular os primeiros passos daquele bebê.
Usar os olhos em slow motion quando a água encostar no pó de café pra reparar na primeira formação de vapor.
Congelar a sensação provocada pelo cheiro de uma lasanha recém saída do forno.
São tantas possibilidades de contemplação. É tanto tempo que implora pra não ser desvalorizado. Na efemeridade da vida, tudo escapa dos dedos num piscar de olhos. Desfrutemos muito mais dos momentos. Enxerguemos mais quando o primeiro tijolo de uma construção for colocado. Respiremos com consciência o oxigênio que está aí. Vivamos com mais intenção, sem se deixar ser dominado por um caminho completamente automatizado.
“Sou uma filha da natureza: quero pegar, sentir, tocar, ser. E tudo isso já faz parte de um todo, de um mistério. Sou uma só. (...) Sou um ser. E deixo que você seja. Isso lhe assusta? Creio que sim. Mas vale a pena. Mesmo que doa. Dói só no começo.” (Clarice Lispector, ‘A descoberta do mundo’)
Esse documentário merece ser assistido:
Minhas duas últimas leituras foram sobre amor e aprendi muito:


Por falar em amor… Essa frase da edição #42 da newsletter da Mariana Moro me balançou demais. É pura poesia:
“Amor é a coragem de estar consciente de uma temporalidade eternamente incerta e ainda assim escolher ficar.”
Leia também o texto na íntegra, vale demais:
Caso queira seguir apoiando ou ser um novo apoiador do projeto…
As edições por aqui envolvem muita responsabilidade, zelo, carinho… Pra contribuir, você pode participar do financiamento coletivo no apoia.se:
Agora, se gosta do conteúdo e prefere mais rapidez, também pode me fortalecer, no melhor valor ao seu bolso, por meio de pix para esdraspereiratv@gmail.com.
Se perdeu alguma edição anterior, não se preocupe:
Aquela despedida ao som de um som… 🎵🎙️
Com base nos critérios de recompensa do financiamento coletivo mensal, meu muito obrigado a:
Mariana Maginador, Rafael Vieira, Camila Laister Linares, Bruno Rodrigues, Carol Magnani, Adelane Rodrigues, Rogeria Portilho, Lucas Pereira, Evilazio Coelho, Welliton Nascimento e Beatriz Souza.
Até logo! 😘
Muito obrigada pela indicação! Amei o texto ❤️.
Que texto importante, me pego pensando muito nisso.