Leia a edição anterior: [perder-se]

Você apenas precisa se conformar que faz o que está ao seu alcance a partir das suas condições e das suas possibilidades de momento.
Essa frase simplesmente surgiu como um eco na minha mente. Como se o cérebro tivesse soprado: escreva, escreva, escreva antes que ela suma.
A reflexão a seguir pode ser um de nossos escudos mais incríveis às autodepreciações/automutilações de alma que insistimos em fazer.
Como já dizia Kristin Neff em seu livro sobre o conceito de autocompaixão, “não há ninguém que nos trate tão mal quanto nós mesmos”.
Na quarta-feira, um dos primeiros vídeos que assisti nas redes foi esse do @carvalhando, em que ele trazia uma reflexão interessante sobre a estética da produtividade, sobretudo relacionando-a aos cada vez mais espalhados vídeos de vlogs, de rotinas diárias etc.
Aquilo caiu como uma luva de incentivo a pensar.
Há três anos, escrevi um texto para o LinkedIn com o título “O imediatismo e as comparações vão nos enlouquecer”. Confesso que sigo fiel a essa afirmação. Por mais que a gente eventualmente tenha consciência sobre a importância de não se comparar, talvez dê pra incluir esse desafio no rol de processos terapêuticos mais difíceis de assimilar com constância.
É que, com frequência, insistimos em simplesmente passar uma borracha nesse modo consciente. Esquecemos, nos frustramos e nos machucamos com a própria mente agindo como a torturadora da vez.
Questione: como as pessoas podem ter rotinas tão bem organizadas e produtivas quanto a desses vídeos tão harmônicos apresentados nas redes sociais?
Neles, o perfeito impera:
um segundo celular que registra a tela do primeiro e prova o acordar às 5h (quem garante que não é algo montado? queremos uma análise minuciosa dos fake vloggggggs, por favor);
o tapetinho esticado, momento meditação (ou chame de mindfullness pra parecer mais cool, sabe?!);
o vaporzinho do café, os ovos mexidos e as frutas cortadas simetricamente, tudo esticado numa toalha branquinha, de mesa posta em plena segunda-feira;
os milhares de post-its espalhados pelo livro da vez (ora, só podemos ler se for pra aprender, não é mesmo?!);
agora é hora de descer treinar na academia do prédio, que tem a estrutura de uma SmartFit, diga-se de passagem;
8h30, o espelho do elevador mostra os dedos fazendo um sinal da paz, enquanto na outra mão e nos ombros opostos estão bolsa, marmiteira e afins;
o(a) perfeitinho(a) chegou ao trabalho – mesas todas limpas com os macbooks prontos pro combate: “bora fazer as calls do dia”, fones sem fio (ou airpods que chama?) sempre a postos, aquele sucessowww!;
“hoje tive cinco calls, três reuniões de alinhamento, executei aquele projeto que faltavam apenas detalhes… no almoço fomos naquele restaurante super agradável em Moema, irado... às seis da tarde fui embora do escritório, mas é claro que encarei aquele trânsito de São Paulo, né, meu?! fazzzzz parte!”;
“chegando em casa, aquele banho revigorante (fico imaginando o trampo de achar um lugar pra apoiar o celular e filmar), uma caixinha de japa bem delícia e Netflix de lei”;
“uma hora antes de dormir, nada de celular, tá… (e o que é que tá te filmando com seu Kindle na mão, criatura?!) amanhã tem mais!” tapinha com a mão aberta no NADA DE CELULAR, fim.
A princípio, já me peguei curtindo demais esse tipo de vídeo. Desfrutando e pensando: caraca, que vida incrível de se ter…
Só que quando a gente é provocado por vídeos como esse do Carvalhando, precisa assumir nossa ingenuidade, mesmo que momentânea.
Esses conteúdos são um recorte. Harmônico. Talvez a intenção não seja demonstrar uma vida perfeita, mas minimamente uma vida agradável.
Cadê a pia cheia de louças do jantar sendo lavada?
Cadê o cesto de roupas sujas cheio esperando o fim de semana chegar pra serem batidas?
Cadê os fios de cabelo espalhados pelo piso clamando pela passagem do amigo aspirador?
Cadê o prato que deu errado e teve de ir quase inteiro ao lixo?
Mas e aí, meu querido, minha querida, o que você entendeu dessa página que passava o olho enquanto o celular filmava? Quero notas.
Por que você não filmou aquela flor que morreu sem seu cuidado?
E o arroz que você deixou queimar por que ficou meia hora arrastando a tela pra cima, como é que fica?
Sabe, precisamos nos contentar mais com a normalidade das nossas vidas.
É legal mostrar uma rotina atraente, claro. Hipocrisia é dizer que não queremos.
Mas, se o fizermos, que seja menos hollywoodiana e com mais doses de sinceridade no meio desse filme baseado em fatos reais. É um crime de alma alimentar a ansiedade alheia, sabia?! Como seria se a gente se deparasse mais com papos retos assim:
“Tô passando aqui pra dizer que não entendi essa página do livro. Alguém pode me ajudar a entender?”
“Tô aqui pra pedir dica de como espantar esse monte de formiga que insiste em invadir minha cozinha…”
“Tô aqui porque a cebolinha que plantei na sacada tá demorando pra vingar. Alguém já passou por isso?!”
“Tô aqui pra contar que ontem tava ansioso e comi uma caixinha inteira de Bis numa sentada. Mais alguém já passou por isso e se arrependeu?”
Ter esse senso de que é impossível sustentar uma perfeição, inclusive, é uma barreira à comparação injusta.
E é sempre bom reforçar: essas vidas aparentemente perfeitas exibidas a toque de caixa por aí são vidas de pessoas que saíram de outro contexto e muito provavelmente carregam uma série de privilégios a mais que você.
Tome cuidado com a estética apresentável das coisas.
Hoje em dia é muito fácil publicar esses “curtas” encantadores. Mas quantas vezes será que aquela pessoa gravou até chegar naquilo que esperava? Na vida real, lembremos, não dá pra fazer edição. É aqui e agora. É pá e bola. É tentativa e erro constantes. É levanta e anda. É um dia de cada vez.
Quando se culpar por não contar com uma rotina parecida com a de alguém que acompanha virtualmente, reflita: isso tem me inspirado mais ou me irritado mais? E então tome uma decisão. No livro ‘Procrastinação: Guia científico sobre como parar de procrastinar’, a autora Lilian Soares nos presenteia com esse ensinamento excelente:
“Se você tentar transformar tudo ao mesmo tempo, isso tende a ser muito, muito desestabilizador. Em geral, o que as pessoas devem fazer, é pensar em mudanças como um projeto. É um projeto que demora.”
Por falar em leitura, essa questão da produtividade exacerbada se alinha à positividade tóxica. Características que também se relacionam à ‘Sociedade do Cansaço’, obra do filósofo Byung-Chul Han. O coreano afirma que alguns estados patológicos vêm justamente de um “exagero de positividade”.
“A depressão é a expressão patológica do fracasso do homem pós-moderno em ser ele mesmo.”
“A lamúria do indivíduo depressivo de que nada é possível só se torna possível numa sociedade que crê que nada é impossível.”
Em ‘Topologia da Violência’, outra obra da série de livros de Han, há outra reflexão profunda:
“O sujeito de desempenho esgotado, depressivo está, de certo modo, enfastiado de si; cansado e esgotado de brigar consigo. Totalmente incapaz de sair de si, de estar lá fora, de abandonar-se ao outro, ao mundo, vai se remoendo interiormente, o que paradoxal e paulatinamente deixa-o oco e causa seu esvaziamento.”
Tenhamos, então, mais tranquilidade e equilíbrio ao fazermos análises de nossas vidas. Não é porque não são dignas de Oscar que merecem ser desprezadas.
Ah, e pra ficar ainda mais cravado na minha e na sua memória: apenas precisamos nos conformar que fazemos o que está ao nosso alcance a partir das nossas condições e possibilidades de momento.
Combinado?!
Livros citados nesta edição:
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Gosto das suas provocações! Sorri na parte do ~cadê a pia cheia de louça esperando ser lavada?~ porque aqui tá desse jeito. Eu lendo e pensando que horas vou lavar a bendita louça e POR QUE, POR QUE, DEUS, a louça nunca acaba e eu nunca paro de comer? Reflexões da vida adulta. Obrigada por mais uma boa leitura. A louça quase sempre pode esperar :)