Edição especial: A Mulher da Casa Abandonada
Alguns pensamentos sobre o assunto mais comentado das últimas horas...
Se você acessa minimamente as redes sociais, deve saber qual tem sido o maior assunto do momento: o podcast A Mulher da Casa Abandonada e suas implicações.
Ontem, vimos o estopim do caso. A Polícia Civil entrou na mansão em Higienópolis, como parte de uma operação que investiga possível abandono de incapaz de Margarida Bonetti, moradora do imóvel.
Se não ouviu o podcast, é caótico pensar em Margarida como vítima. Ela e o ex-marido, Renê Bonetti, foram acusados de manter uma empregada brasileira nos EUA em condição análoga à escravidão, há mais de 20 anos.
Renê cumpriu pena por isso; Margarida, não. Voltou "fugida" para o Brasil e nunca prestou contas à Justiça Americana. Os documentos do FBI apontavam que o casal agredia a empregada, jogava sopa quente nela, não pagava salários etc.
Caso queira ter mais detalhes da história, recomendo que pesquise as reportagens já publicadas ou ouça o próprio podcast para tirar suas conclusões.
O que quero trazer à tona aqui é um olhar sobre o contexto jornalístico e de desdobramentos do caso.
Vamos aos pontos:
#1: No meu modo de ver, Chico Felitti, o repórter responsável pela produção do podcast, conduziu muito bem o trabalho, dentro do possível. Apurou e ouviu todos os lados, inclusive o de Margarida.
Vejo pessoas falando que uma pessoa dessas não se ouve, diante de tudo aquilo que fez. Engano. É dever jornalístico tentar ouvir quem quer que seja, independentemente daquilo que tenha feito/cometido.
#2: Amigos próximos consideraram que Chico fez muito juízo de valor de Margarida durante a narrativa. Neste ponto, confesso ser difícil chegar a uma visão 100% concreta. Vejo essa característica quando ele tem o último encontro presencial com ela no desenrolar do podcast e concorda que "a história dela é horrorosa".
Mas também não julgo, pois sempre digo que profissionais do jornalismo não colocam capas e tiram capas quando voltam para suas casas.
Na entrevista final com ela, por exemplo, fica transparente um desgaste físico/mental da parte dele, o que faz deixar escapar doses de adrenalina e de indignação em seu tom de voz. Temos nossas premissas e ideais, e vez ou outra, isso escorre pelas beiradas. Já fiz entrevistas difíceis na carreira, mas ter de ouvir alguém como Margarida realmente não deve ser simples. Aqui, recomendo: não seja tão crente da tal imparcialidade 100%.
#3: Vi pessoas criticando a inserção de publicidade no meio da produção. "Propaganda de filme de terror no meio de uma história assim soa horrível", alguns disseram no Twitter. Não posso ser hipócrita. Jornalismo profissional precisa se pagar. E os profissionais não conseguem chegar ao caixa de mercado e dizer: "Oi, tudo bem? Sou aquele jornalista... Hoje pago com meu nome". Muito menos um veículo como a Folha, que abraçou o projeto, seguiria sustentável sem anunciantes. Ninguém vive apenas de amor ao ofício. Money talks, apesar da romantização de algumas carreiras. Menos ingenuidade, por favor.
#4: A meu ver, em geral, com algumas ressalvas, o trabalho do Chico foi bem feito, e ele segue como um profissional que admiro.
A grande questão é o que as pessoas fizeram com a história em tempos de redes sociais ensandecidas. Ouvi quem dissesse que desde o começo deveria ter sido claro que tratava-se de uma investigação jornalística. Sério? As pessoas perderam essa mínima capacidade de interpretação?
Não creio que isso seja o motivo de a casa ter virado um espetáculo para tiktokers e afins, à defensora dos animais, à própria polícia. O problema é estarmos numa sociedade em que Black Mirror não é mais somente uma série, e sim vida real.
#5: O que me espanta mais: uma escravocrata conseguir "inverter o jogo" e ser tratada como vítima pela Polícia Civil. Entendo que o crime cometido por ela está prescrito, não há mais o que se fazer legalmente falando. Mas, por viver numa casa abandonada, de maneira excêntrica, quer dizer que esteja em condições análogas à escravidão? É de acabar com o pequi do Goiás. Quantas pessoas não têm saneamento, energia e condições básicas de dignidade Brasil afora? A polícia faz um estardalhaço desses se não for em um dos bairros mais ricos do País?
Apesar desse surrealismo gigante, também não quer dizer que as pessoas tenham direito de dar show fora e dentro da casa, ou serem justiceiras da condenação de Margarida, o que nem a Justiça Brasileira, nem a Americana levaram adiante.
Deixo uma frase de Guy Debord encerrando a análise, afinal, vivemos cada vez mais a Sociedade do Espetáculo:
"Toda a vida das sociedades em que dominam as condições modernas de produção aparece como uma imensa acumulação de espetáculos"
No mais, recomendo que ouçam o podcast 'Crime e Castigo', da Rádio Novelo, que traz à tona conceitos e reflexões muito importantes sobre Justiça.
E você, o que achou dessa história toda?
Meu muito obrigado às pessoas que tem apoiado a news.
Agradecimento especial a:
Mariana Maginador, Rafael Vieira, Camila Laister Linares, Bruno Rodrigues, Basílio Magno, Fátima Castanho, Lauro Medeiros, Mara Pereira, Lucas Pereira, Vitor Cavaller, Welliton Nascimento, Beatriz Souza, Rose Ferregutti e Mikaella Narriman.
Agradeço, também, ao Espaço Humanamente, que tem apoiado as edições deste mês.
Nos encontramos de novo amanhã. Um beijo e um abraço.