
[edição excepcional nesta quarta-feira porque o texto vem pedindo passagem aqui dentro]
Escrever cansa.
E esse cansaço sufoca, embora não seja completamente físico.
É um cansar de alma.
Beira o sufocamento, uma asfixia imaginária (ou real até certo ponto?).
Porque é o maior dos hipócritas quem afirma com a faca entre os dentes, aparentemente cheio de confiança, que escreve só pra si. Viva, portanto, só com seu diário escondido a sete chaves, que tal?
Depois que a gente consegue chutar a Síndrome do Impostor mesmo que por um instante e admite certa habilidade nesse riscado, é óbvio que o desejo é ser lido e reconhecido por isso.
Seria um paraíso se a escrita fosse uma peça individual de teatro que a gente mal se importa com a plateia ou com a possibilidade de encher os bolsos por meio de palavras (uma desilusão que nos trai sem piedade ainda que lá no fundo reconheçamos seu grau utópico). Nossa saúde mental agradeceria, fala a verdade.
Se as reações não importassem, seria mais fácil. Se o retorno das pessoas — a maioria, inclusive, que nunca nem vimos na vida — não se sustentasse como um dos sinais mais perversos de validação, penso que lidaríamos bem melhor.
Podemos dormir sobre a mesa de uma unanimidade: produzir na internet é extenuante.
Será que Clarices e Pessoas sobreviveriam à máquina de moer profissionais que é o universo digital? Será que “passariam o chapéu” pedindo assinantes pagos às suas newsletters, financiamentos coletivos pra lançarem seus livros? Será que se renderiam aos vídeos lendo trechos de suas próprias obras? A introversão e a língua presa da autora jogariam contra. O autor, por sua vez, poderia recorrer às variações de vozes via inteligência artificial pra diferenciar cada um de seus heterônimos. Já imaginou? Será que tiveram sorte ou azar por serem de outras épocas?
Eles e outros autores clássicos viveriam o sofrimento bem pontuado pela?
“me aponte uma pessoa que fica feliz em gastar horas produzindo um reels pra ele ter apenas 150 visualizações e nenhum comentário? infelizmente, a gente sente essas coisas na boca do estômago – é como o mundo funciona agora e eu não sou diferente de nenhum outro book-qualquer-coisa que vocês acompanham por aí.
quem disse ‘trabalhe com o que ama e nunca mais terá que trabalhar’, claramente não era apaixonado pelo que fazia. a obrigação é a morte lenta e dolorosa do criativo, talvez por isso os conteúdos hoje sejam cada vez mais curtos e mais rasos.”
Voltando à escrita, nós que afirmamos amá-la, dizemos aos quatro cantos que ela nos salva. Eu mesmo disse isso em vários momentos. Mas o despejar verborrágico do
me quebrou a concepção de que os dedos são frequentemente privilegiados por sambar pelas teclas que constroem um alfabeto de possibilidades.“Escrever me tira a paz, consome meus pensamentos, me faz suar como uma geladeira velha. Escrever não liberta meus demônios, ao contrário, convida todos para tomar café com biscoito. Não é tarefa simples reunir ideias e costurar com sentido. Escrever e ter que escrever me incomoda. Não se trata de dor, mas de uma ardência que começa antes mesmo do embate com as palavras.” (leia o texto completo aqui)
É irônico refletir sobre essa maldição maluca que acompanha quem escreve: sempre estamos tentando encontrar respostas, uma suposta grande razão que nos faz seguir escrevendo. E a pergunta “por que você escreve?” dificilmente será respondida sem uma construção poética, sem uma organização de pensamento capaz de agrupar palavras até transformá-las em conjuntos de frases de impacto, dignas de um quase instantâneo encantamento alheio.
Essa é a nossa ambição enquanto escritores, não me venha de demagogia dizer o contrário.
“Escrever é quando vôo, escrever é quando começo incêndios. Escrever é quando tiro a morte do meu bolso esquerdo, atiro-a contra a parede e a pego de volta no rebate.” (Charles Bukowsky, em ‘O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio’)
Queremos, conscientemente ou não, arrancar UAUs ao falarmos de nossa grande vocação (e existe isso aí, produção?). Eu também sou prova disso, porque na edição 57, lá em agosto do ano passado, publiquei um texto em que bradava no título: “Escrever não serve pra nada”.
“Quem escreve, normalmente, tem a sensação de que PRECISA conter de alguma forma o seu vulcão em erupção, estancar o sangue interno usando gases costuradas com letras, papéis em branco, folhas de anotações”, escrevia, 13 edições atrás.
É mais justo assimilar esse ato como algo cercado por maniqueísmo. Te amo, mas, vez ou outra, posso te achar o mais insuportável dos seres.
Talvez nós, detentores dessa relação amor&ódio com a palavra, nunca seremos capazes de encontrar respostas concretas e absolutas sobre os motivos que continuam nos deixando de mãos fincadas em documentos vazios, com o peito palpitando rotineiramente.
Talvez a gente só precise aceitar mais essa residência no abstrato. Talvez essa falta de um significado palpável seja como uma academia em que a gente vai, namora com a endorfina, mas na saída come um Big Tasty lambendo os dedos sem pudor. Talvez a escrita seja justamente um pouco de droga, um pouco de salada. Talvez ela seja a montanha que escalamos sem necessariamente estar preparados e nos rouba completamente o ar — e, ao mesmo tempo, a bombinha, ou o oxigênio que nos devolve a respiração num alívio sem tamanho.
Escrever é um mecanismo, componente forte de nossas dezenas insatisfações do mundo. Escrever é uma forma de atravessar o tempo e depois reconhecê-lo (ou não). Fui eu mesmo que escrevi isso aí?: quantas vezes isso sairá da ponta de nossas línguas ao tocar um texto de anos atrás, meses ou até ontem? Sensação comum a perder de vista.
Eu citei insatisfações e esse foi o ponto inicial, a fagulha, o cimento da edição, e aí foi se combinando às outras referências.
Fiz um story no Instagram contando que estava preparando a edição exclusiva do mês, com a curadoria de conteúdo, e depois perguntei se as pessoas consideravam acessível os R$ 25 mensais pra ser assinante pago da newsletter.
Acrescentei que muitas vezes me sentia envergonhado de pedir esse incentivo financeiro, fiz um desabafo num textão a respeito da sensação de clamar apoio por não estar roubando, matando, ““““““apenas””””” escrevendo. Tá vendo só o que a escrita é capaz de fazer com a gente? Bem que o Matheus avisou que ela tira a paz.
Em minutos, apaguei todos os stories e pensei: caramba, quero ser valorizado e tenho dúvidas se toda a dedicação que coloco no projeto merece R$ 25? É provável então que o errado seja eu, não quem opta por não contribuir.
Essa dificuldade de identificar nosso valor enquanto pessoas que escrevem talvez seja atribuída justamente à dificuldade de encontrar respostas pra o que a escrita representa — pra nós e pra quem lê. A arte, em geral, é assim, por ser uma causadora de diferentes percepções em sua infinita quantidade de formatos. Percepções normalmente avessas, antagonistas ao cenário de números, métricas e luta por abastecimento/sustentação do próprio ego ou demanda por autoafirmação em tempos linkedianos.
“Porque a escrita não é uma coisa palpável, não tens um objeto para mostrar. Queres ser médico, olha aqui eu a brincar com os meus bisturis. A escrita é uma coisa que não se agarra. A escrita não é uma coisa só. É como aquele passador da cozinha, que tu atiras para lá as coisas e só caem algumas. Recebe tudo. Eu não tenho essa coisa de só escrever quando estou triste, para mim é um trabalho diário, portanto eu escrevo sempre. Não é quando me apetece. É principalmente quando não me apetece. Por isso a escrita recebe tudo, mas tenta sempre chegar a um lugar de abertura, de deixar entrar, de - eu até tenho aqui uma nota, estava a pensar nisto há bocado - desfazer as barreiras da idolatria. De deixar de pôr esta coisa neste lugar. Tudo se mistura. Luz e sombra, somos todos feitos, mesmo quem diz que não, somos todos feitos das duas.” (Matilde Campilho, poeta portuguesa, em entrevista à Vogue no ano de 2018).
É claro que a necessidade do reconhecimento e sobretudo do retorno em dinheiro (money talks) — cada vez mais evidente nesses tempos em que nosso poder de compra só diminui e as recompensas não estão à altura — dilata essa confusão e aprofunda o debate da pergunta que não costuma render milhões: “por que seguir escrevendo, então?”
Nessa reflexão repleta de talvezes, uma alternativa de receita pode ser elaborada no processo terapêutico de aceitar as coisas de um modo mais natural. Uma ode aos estoicos: posso fazer, mas o que virá depois está longe do meu controle.
Talvez por isso Clarice não quisesse ser vista como uma profissional naquilo que fazia. “Faço questão de não ser profissional, pra manter minha liberdade”, dizia, em sua última entrevista, em 1977, numa rara aparição na televisão.
Afinal, quanto continuará sendo difícil considerar lucro tudo aquilo que vier a partir da escrita? Financeiro ou não…
Mais uma vez, alimento uma ironia, já que tudo, pra variar, é uma figura abstrata, complicando esse desafio.
"O caos é uma ordem por decifrar." (José Saramago)
Será a escrita um caos dos mais indecifráveis?
Sigo questionando, mas sei que as respostas devem ser infinitas.
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Ouça, veja, leia...
🎧Dois dos meus episódios preferidos do Rádio Novelo Apresenta saíram recentemente:
🎬 A terceira e última temporada de Bom Dia, Verônica é de tirar o fôlego. E só reforça que a produção audiovisual brasileira sabe, sim, ser gigante.
Mini spoiler: tem beijão de dois dos maiores atores da dramaturgia nacional 😲
📖 O vídeo da @soylarinha, que descobri essa semana e tô adorando, é confortante demais.
Por isso, já quero ler seu livro, que você pode comprar aqui. Olha só que capa linda, inclusive:
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Até logo! 😘
Oi, Esdras, tudo em paz?! 😌
Sabe que eu não penso que seja a escrita uma atividade conflituosa. Escrever é talvez uma resolução, uma saída confortável para muitos dos conflitos que nos habitam.
A tua fala me remete sim a questão da receptividade da escrita na nossa cultura. A tua fala me remete à descrença em atividades que nascem de um lugar de introspecção e contemplação de si e do mundo.
Isso é frustrante. Porque fala de nós. Entregamos ao mundão as preciosas pedras que criamos a partir de nossas questões e existe uma desvalorização que é social. A desvalorização do que é subjetivo, do que é poético, do que é inútil.
Isso é frustrante.
ADOREI a edição, Esdras. Confesso que quase a perdi entre montes de e-mails, mas ainda bem que a encontrei em meio a uma limpeza, porque serviu como um abraço e, principalmente uma resposta. Mesmo que esta seja: não existe resposta. E encarar isso, muitas vezes, faz a gente alinhar nossas expectativas e acalma o coração.
Gostei muito de refletir sobre como seriam Clarice e outros autores consagrados nos tempos de hoje. Eles não tiveram a oportunidade (e a dor) de ter a respostas (ou o silêncio) do público instantaneamente, enquanto produziam. Eles tiveram que lidar com a sorte (e o azar) de ter de concluir obras inteiras antes de conversar com o mundo. E, por isso, não conviviam diariamente com o julgamento que enfrentamos, pelo menos não da mesma forma.
Parabéns pelo texto!